A justiça suspensa em Portugal

Portugal é, à data de redação destas linhas, um país a várias velocidades. Alguns sectores económicos funcionam em pleno, outros funcionam com restrições, e outros ainda aguardam a aprovação de normas específicas para que retomem o seu funcionamento. O mesmo se verifica tanto do lado da iniciativa privada como do lado dos serviços públicos.

Uma das medidas de resposta do Governo português à situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19 foi a da suspensão da maior parte dos prazos processuais (entre outros). O regime foi aprovado tardiamente, o que levou à produção de efeitos retroativos, e, menos de um mês depois da sua entrada em vigor, sofreu importantes alterações, mantendo-se desde então em vigor, pelo menos à entrada da última semana do mês de Maio de 2020.

Se, em circunstâncias normais, a produção legislativa é um processo complexo e que nem sempre consegue apresentar resultados práticos em tempo útil, as incrivelmente excecionais circunstâncias em que nos encontrámos – e aquelas em que nos encontramos agora, que são um pouco diferentes –, levaram a uma profusão de diplomas legislativos que foram ajustando, quase em tempo real, a resposta do Estado Português ao cenário de crise. E nesse particular, o sector da Justiça é tão afetado como qualquer outro sector.

Comecemos pelo princípio.

No dia 18 de Março de 2020 foi decretado, pela primeira vez desde que em Portugal vigora um regime de democracia plural, um Estado de Emergência. Os diplomas legais em questão procederam à aplicação de um conjunto de medidas extraordinárias e de caráter urgente de restrição de direitos e liberdades, em especial no que respeitou aos direitos de circulação e às liberdades económicas, com vista a prevenir a transmissão do vírus no contexto de pandemia que fora decretado pela OMS (Organização Mundial de Saúde). Na prática, muitos aspetos da vida em Portugal já nessa data se deparavam com severas restrições ou profundas alterações – em parte por via legislativa –, e, em particular, os tribunais portugueses, com maior ou menor discricionariedade e seguindo de perto as fontes noticiosas próximas do Governo português, desmarcavam já a maioria das audiências agendadas, mantendo apenas as que se referissem a processos em que estivessem em causa direitos fundamentais.

No dia seguinte, por via da Lei 1-A/2020, de 19 de março, foi decretada a suspensão da maior parte dos prazos processuais, com efeitos retroativos. A fórmula encontrada pelo legislador foi a de suspender todos os processos urgentes e de aplicar aos não-urgentes o regime das férias judiciais, que ocorrem em períodos determinados pela lei de processo e durante as quais não são praticados actos processuais, com excepção dos urgentes e dos que respeitem a processos com detidos ou em que estejam em causa liberdades individuais.

Esta suspensão foi aplicada não só aos atos nos processos e procedimentos nos tribunais, mas também aos dos demais órgãos jurisdicionais, tribunais arbitrais, Ministério Público, julgados de paz, entidades de resolução alternativa de litígios e órgãos de execução fiscal.

Com as necessárias adaptações, foi aplicada igual suspensão aos procedimentos em curso nos cartórios notariais e conservatórias, aos procedimentos contraordenacionais sancionatórios e disciplinares em curso em todos os serviços e órgãos administrativos (do Estado e também independentes) e aos prazos administrativos e tributários em curso a favor de particulares.

Foram também suspensos os prazos de prescrição e de caducidade relativos a todos os tipos de processos e procedimentos.

Por outro lado, o diploma salvaguardou todos os contratos de arrendamento, suspendendo a produção de efeitos de comunicações de revogação ou acções de despejo.

A Lei não proibiu de forma determinante a prática de quaisquer atos processuais e procedimentais, admitindo-os através de meios de comunicação à distância adequados, designadamente por teleconferência ou videochamada, se tal fosse considerado tecnicamente viável. A obrigatoriedade de realização presencial ficou restrita aos atos urgentes em que estivessem em causa direitos fundamentais (por exemplo, diligências processuais relativas a menores em risco).

Duas semanas depois, a Lei 4-A/2020, de 6 de abril, veio alterar e clarificar determinados aspetos do regime de suspensão.

Uma sua norma interpretativa veio esclarecer que a suspensão de prazos se iniciara, indubitavelmente, no dia 9 de março de 2020.

Por outro lado, a realização de atos e audiências através de meios de comunicação à distância passou a ficar dependente do acordo das partes nesse sentido.

Adicionalmente, o legislador voltou atrás na intenção de suspender os prazos nos processos urgentes, tendo alterado o regime para que estes fossem retomados e os respetivos atos e diligências fossem praticados, preferencialmente através de meios de comunicação à distância adequados ou, tal não sendo possível, presencialmente. Para este efeito, foram equiparados a processos urgentes os processos e procedimentos para defesa dos direitos, liberdades e garantias lesados ou ameaçados de lesão por quaisquer providências inconstitucionais ou ilegais, e os processos, procedimentos, atos e diligências que se revelem necessários a evitar dano irreparável, designadamente os processos relativos a menores em risco ou a processos tutelares educativos de natureza urgente e as diligências e julgamentos de arguidos presos.

A norma que motiva este texto permaneceu sempre inalterada, desde o diploma original, e refere-se à cessação deste regime excecional, prevendo que seria o Governo a estabelecer, em decreto-lei próprio, a data de término da situação de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19 para efeitos processuais.

Nas últimas semanas, os vários operadores do setor da Justiça têm-se vindo a pronunciar sobre as possíveis formas de tentar recuperar os atrasos processuais verificados por via do surto pandémico da doença COVID-19, com alguns profissionais a defenderem a redução do período de férias judiciais de verão como uma medida que poderia atenuar os efeitos da suspensão. Vozes discordantes alertaram que o direito a férias dos funcionários dos tribunais, bem como dos próprios magistrados, não poderia ser prejudicado. A Ministra da Justiça acabou por colocar um termo ao diferendo, esclarecendo de forma perentória aos jornais que nada iria mudar no calendário judicial.

O texto final do decreto-lei que decretará a retoma dos prazos judiciais e que coloca um ponto final nas especulações foi entretanto conhecido e prevê-se que os prazos estejam retomados já a partir do início do mês de Junho

Até que esta situação esteja definitivamente ultrapassada, os Tribunais continuarão a tramitar processos dentro das respetivas possibilidades e alguns atos processuais continuarão a ser praticados antes do termo dos respetivos prazos por mandatários judiciais mais expeditos, como sempre aconteceu (mesmo em período de férias judiciais).

E, salvo um período inicial de maior fulgor no cumprimento de todos os prazos processuais entretanto suspensos, a retoma da atividade dos Tribunais espera-se pacífica, mais constrangida pelas já muito preenchidas agendas do que por qualquer falta de vontade ou de meios dos diversos operadores judiciais.

Sem resposta ou compensação, ao que parece, ficarão todos aqueles que dependem de uma Justiça célere e eficaz para o exercício dos seus legítimos direitos, principalmente se o recurso aos Tribunais for determinante para a sobrevivência de empresas, negócios e, até, de profissionais do foro, naquela que é historicamente a maior paragem do sistema judicial nos seus atuais moldes, ultrapassando por larga margem o “crash” informático da plataforma CITIUS ocorrido em Setembro de 2014 e que durou, à data, por 44 dias.

 

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